Os Canibais da Rua do Arvoredo - T. N. Diniz

Olá fãs de leitura, tudo bem? O livro que vou falar hoje é bem atual (2023) e brasileiro! É o primeiro livro brasileiro que falo sobre e o segundo post aqui que li o livro na língua original (leia o primeiro em <https://opiniosliterarias.blogspot.com/2022/10/the-firm-j-r-grisham-jr.html?m=1>) Eu confesso que não conhecia o autor e comprei o livro num dia na livraria com minha namorada. Nós fomos lá para comprar um livro do Stephen King (Duma Key) que estamos lendo juntas e porque eu tinha um cartão-presente para torrar (obrigada premiação!). Porém, ao ver a capa desse livro, eu me interessei na hora. Tenho que confessar, às vezes um livro nos ganha pela capa. Claro que o fato de ser um livro brasileiro também me chamou a atenção, fazia tempo que não lia um da nossa terrinha. Outra coisa interessante nesse livro é que ele é o primeiro brasileiro que leio de horror, então isso também me instigou. O livro que tinha lido antes desse (Neuromancer) me levou um bocado de tempo e eu pensei que iria demorar um pouco mais para engatar no próximo, mas a verdade é que eu levei 5 dias corridos, nos quais na real eu só precisei de duas sentadas para completar. É de uma leitura fácil, cativante e muito interessante. Como sempre, haverão spoilers da história, então eu recomendo fortemente a leitura antes!

Primeiro, falemos um pouco de seu autor: Tailor Netto Diniz é um porto-alegrense que já escreveu 22 livros e também se dedica à escrita de roteiros. Confesso que não achei muitas informações sobre ele na internet, incluso nem sei quando ele nasceu. Só o que posso lhes oferecer é essa pequena informação sobre seus prêmios mais notórios: <Tailor Diniz (grualivros.com.br)>. E uma confirmação que esse livro será lançado para streaming: <Livro de Tailor Diniz sobre caso real de canibais de Porto Alegre será adaptado para o streaming (globo.com)>

Pois bem, vamos ao que interessa. Primeiro, eu gostaria de falar que embora esse livro seja de ficção, isso é, as personagens não existem na vida real, ele se enquadra bem no gênero de romance histórico. Esse gênero é justamente um tipo de livro ficcional, porém que conta com elementos históricos, ou seja, que são verídicos e aconteceram no passado. Belamente exprimido nas palavras de Fredric Jamenson: "O romance histórico, portanto, não será a descrição dos costumes e valores de um povo em um determinado momento de sua história (como pensava Manzoni); não será a representação de eventos históricos grandiosos (como quer a visão popular); tampouco será a história das vidas de indivíduos comuns em situações de crises extremas (a visão de Sartre sobre a literatura por via de regra); e seguramente não será a história privada das grandes figuras históricas (que Tolstói discutia com veemência e contra o que argumentava com muita propriedade). Ele pode incluir todos esses aspectos, mas tão-somente sob a condição de que eles tenham sido organizados em uma oposição entre um plano público ou histórico (definido seja por costumes, eventos, crises ou líderes) e um plano existencial ou individual representado por aquela categoria narrativa que chamamos de personagens.". Você pode ler mais a visão dele de romances históricos no artigo intitulado O romance histórico ainda é possível? em <SciELO - Brasil - O romance histórico ainda é possível? O romance histórico ainda é possível?>.

Dito isso, vamos primeiro analisar sua parte ficcional, as personagens Catarina e José, e depois a parte histórica, as pessoas Catarina Palse e José Ramos (para maior clareza, os chamarei por seus sobrenomes). Junto à parte ficcional, entram também a NUSE e o controle feito por chips em pessoas vacinadas contra a COVID-19.

O livro é todo escrito em primeira pessoa, porém é uma pessoa de fora do casal Catarina e José. Nós temos o conto narrado por Zìnìdt Otten, uma personagem da NUSE, ou Nuvem Superior Eterna Globalista. Primeiro vou falar sobre a NUSE. Nós vamos descobrindo os planos dessa organização internacional de acabar com a humanidade. Eles querem o controle de todas as pessoas e eles conseguem fazer isso, obter informação total sobre a pessoa e seus pensamentos, através de chips implantados juntos com a vacina contra a COVID-19. Eles conseguem saber quem é e quem não é vacinado e o autor brinca justamente com várias teorias da conspiração que surgiram no Brasil na época da pandemia, como por exemplo que a COVID-19 e a vacina são formas de manipulação da população e um plano maléfico para esmagar as pessoas "de bem". O autor brinca muito com esses termos e satiriza o ponto de vista dessas pessoas, que nós sabemos que são pessoas negacionistas. Bom, no livro de Tailor Diniz, essas pessoas estão certas: realmente é um plano para dominação mundial. Um plano bem arquitetado, porém que se encontra de difícil implementação no Brasil.

Gostaria primeiro de falar sobre isso:

Eu não sou 'expert' em negacionismo, então recomendo fortemente que leiam sobre quem sabe do assunto em <Negacionismo na pandemia: a virulência da ignorância | Unicamp>. Porém, verdade seja dita, independente de porque algumas pessoas são mais negacionistas que outras e o que o negacionismo causou em nosso país, como ruptura políticas, desmoralização de nosso sistema democrático, atraso em medidas sanitárias, etc., a nossa história mudou após esses movimentos. O negacionismo é facilmente definido como "uma crença absurda de que fatos são artifícios ardilosos para nos ludibriar". Porém, fatos são fatos. Fatos não são sequer verdades. A verdade é um conceito da filosofia e nenhum cientista fala da 'verdade' em suas pesquisas, mas sim dos fatos, sua força e suas consequências para o cenário de conhecimento atual. E para ver sobre como verdade é filosofia e não ciência, leia mais em <Afinal, o que é a verdade? | Jornal UFG>. A gente precisa assumir que existe uma verdade para classificar algo como verdadeiro. Isso significa que a gente precisa assumir que, após conhecer todos os dados reais (fatos) e analisá-los da forma mais imparcial possível, o resultado que se obtêm é verdadeiro porque é inevitável que seja de outro jeito.

Porém, e qualquer pessoa facilmente concorda com isso, não é fácil conhecer todos os fatos. Na verdade, para começar, como eu sei que observei todos? Para saber que, aí sim, eu vou encontrar tudo que tem para saber? Como ninguém chega no fim das coisas, e nenhum projeto ou artigo científico chega ao fim de nenhum assunto, a gente sempre vai ter coisas que parecem a verdade, até onde se sabe. E as teorias ganham mais ou menos força à medida que elas continuam verdadeiras mesmo com novos dados chegando. Para testar os dados, e verificar a verdade de uma teoria, os cientistas usam hipóteses. Que são respostas provisórias que são aplicadas aos seus dados. Cientistas não olham para os dados e tiram conclusões de suas cabeças. Tudo que eles fazem é se perguntar se o fato científico que observam pode ou não ser respondida pela hipótese que estão testando. Se sim, sua hipótese está um passo mais perto de estar correta. Se não, talvez seja hora de uma hipótese nova. 

O pensamento científico é criterioso, rigoroso e, principalmente, um caminho "cego". Não se procura moldar os fatos ao que se quer mostrar, procura-se entender o que os fatos te mostram por si só. A hipótese e teoria entram aqui para te ajudar na interpretação. Mas a única coisa que é real nisso tudo, e sempre será, são os fatos. Negar fato é trabalho dos negacionistas. Que têm uma crença tão forte em suas teorias que negam novos fatos que vão contra elas. Suas teorias não podem mais ser chamadas de verdades, porque não contemplam mais todos os fatos. E, se não é verdade, é papel da sociedade procurar o que é. E é com isso que o autor brinca no final. Chegaremos lá...

O Brasil é um estorvo para o plano da NUSE. Muitas pessoas negacionistas, muitas pessoas não vacinadas e, portanto, não-controláveis. Na verdade, vacina com chip para controlar as pessoas foi realmente uma teoria da conspiração fortíssima no país (leia mais em <'Vacina com chip': por que as pessoas acreditam em teorias da conspiração? - 13/04/2021 - UOL VivaBem>). O fato é, porém, que o nosso narrador tem como hobby observar as pessoas que são vacinadas. E um belo dia ele sintoniza nos nossos heróis (?), Catarina e José, um casal como qualquer outro. Eles moram em Porto Alegre e ambos estão na faculdade. 

O casal descobre que abaixo da casa deles, existe um porão e, nesse porão, pessoas já cometeram crimes hediondos. Catarina e José se sentem revigorados como casal ao se aventurar pelo porão, até que começam a ser influenciados a fazerem os mesmos crimes hediondos que os antigos moradores da casa. Eles até que se safam bem no começo, no meio do caminho se livrando da carne humana em forma de hambúrgueres que viram um sucesso na cidade. Porém, uma amiga de Catarina, Pati, consegue descobrir o porão e a polícia é alertada. Você acha que aí acabou? Oras, claro que não. E essa parte final é o verdadeiro plot. Mas estou me adiantando aqui.

Antes da partir para a parte histórica, um detalhe final: o casal Catarina e José simplesmente se encontram obsidiados pelos espíritos dos antigos moradores da casa. Esses antigos moradores os incentivam a matar pessoas, a transformá-las em pedaços comestíveis de carne e, de quebra, contaminar a cidade o máximo possível. Pessoas inocentes consumindo carne humana faz com que Catarina, principalmente, entre em êxtase. No livro, é evidente que Catarina é a mais dominada. No começo ela chega a procurar ajuda da amiga Pati para procurar por um especialista em espíritos, que pudesse ajudá-la a se livrar daquelas presenças. Porém ela é caso perdido desde o começo. Ela é uma jovem bonita e todos os homens só querem uma coisa com ela, da qual ela se aproveita para seus planos.

O sobrenatural foi o elementos que o autor usou para unir o presente ao passado. Agora deixe-me abrir um parênteses para falar sobre o passado e depois caminhamos para o plot final.

Os assassinatos da Rua do Arvoredo é um caso famoso de crimes do século XIX que rolou em Porto Alegre. Em 1863 o casal José Ramos e Catarina Palse começaram a atrair vítimas para seu cativeiro e matá-las. Os restos eram levados para Carlos Claussner, o açougueiro que transformava os restos mortais em linguiça e as vendia para a população ignorante. Vamos falar um pouco sobre o que achei da personalidade deles:

1) José Ramos é brasileiro. A primeira pessoa que ele levou à morte foi o próprio pai. Ele trabalhou na polícia, porém foi afastado por agredir um prisioneiro (tentou arrancar a cabeça dele). E, de quebra, o cara ainda era um figurão da alta sociedade porto-alegrense. Pelo visto, o cara é um psicopata brabo e com sede de sangue.

2) Catarina Palse é húngara. Ela foi estuprada, teve a família assassinada em seu país natal e o primeiro marido se suicidou no caminho para o Brasil. Ela chega sozinha em Porto Alegre e após 5 anos, conhece e decide morar junto de Ramos. Assim que se mudam juntos, os crimes começam. Palse é julgada como cúmplice do crime e eu não sei dizer se ela queria, ou era coagida a ajudar.

3) Carlos Claussner é alemão. Ele começou o açougue assim que chegou à cidade e após 3 anos construiu sua clientela na cidade de Porto Alegre.

A forma de atuar era a mesma descrita no livro. Ramos e Palse saiam à procura de presas fáceis, homens que quisessem se deitar com Palse. O número oficial é de oito vítimas humanas e uma canina.

Alguns desfechos mudam entre a história e o livro:

1) Catarina e José cimentam a ossada, enquanto Palse e Ramos as queimam ou dissolvem em ácido;

2) O cozinheiro do livro, o chapeiro, Manoel, se mata após descobrir o que fez. Carlos é morto por Palse e Ramos;

3) Catarina é a que mais insiste que eles continuem os crimes, assim como é a mente por trás de todas as tramoias e a que mais se protege das acusações, enquanto José é mais seu acessório. Ramos é o verdadeiro maluco. Ele que nega que nunca cometeu nenhum crime e Palse que parece ser seu acessório;

4) Catarina é presa em flagrante e José é encontrado pela polícia. Eles só ficam presos por um tempo e esse o plot final da história que vou falar sobre. Ramos foi surpreendido pela polícia em sua própria casa, na qual mantinha objetos de suas vítimas. Os corpos de Carlos e de mais dois homens (que foram os que ligaram Ramos à polícia) foram achados. Palse confessou as outras vítimas. 

Ramos ia morrer como pena por seus crimes, mas a decisão foi revertida e ele pegou perpétua e morreu num hospital. Palse morreu num hospício e cumpriu 13 anos de prisão. 

Agora, isso tudo que falei são fatos (leia mais em <Rua do Arvoredo em Porto Alegre: Homem fazia linguiça com carne humana (terra.com.br)>). Existem documentos do processo, assim como existem as páginas dos livros nos quais podem ler os fatos (mesmo que ficcionais) de Catarina e José. Porém, existe o que não é fato. E nas duas histórias eles são diferentes. No livro, o que não é fato é que Catarina e José foram obsidiados. Não há como provar que eram os espíritos de Palse e Ramos que comandavam as ações do casal. Na história, o que não é fato é que Carlos estava envolvido na manufatura de linguiças humanas. Não há um registro oficial sobre essa declaração e a lenda urbana fica no imaginário das pessoas. 

Já que estamos brincando com o que é ou não é fato, vamos finalmente caminhar para o desfecho do livro. Catarina e José saem ilesos! São simplesmente liberados pela polícia por falta de acusações formais. Do dia para noite, ninguém em Porto Alegre se lembrava do que tinha acontecido. Agradeça à NUSE por isso. O pandemônio que se instalou após as pessoas descobrirem que comiam carne humana e a série de assassinatos foi um problemão para Porto Alegre. E só piorou a dominação da NUSE sobre o Brasil. Então eles agiram, dando um chá de esquecimento na cidade. 

O livro se encerra com uma ótima passagem:

"[...] se Porto Alegre se esqueceu de ter praticado canibalismo e trata o caso como uma mera fake news, não está livre de, em pouco tempo, se tonar pela terceira vez uma cidade canibal."

Eu a leio da seguinte forma: continue achando que o passado não tem importância, que ele vai conseguir te morder novamente. E saber a nossa história é importante, afinal "Um povo que não conhece sua história está fadada a repeti-la", como diria Edmund Burke. Tudo bem que esse cara aí não é alguém que eu escolha dividir opiniões, mas a frase está correta. É por isso que a Alemanha mantém a história viva do holocausto. É por isso que temos que falar da nossa ditadura militar. Não se trata de pintar o passado como glorioso, como muitos negacionistas fazem, nem demonizar o passado a ponto de achar que algumas feridas é melhor esquecer. 

O tempo é um continuum e o presente só faz sentido à luz da história das pessoas que nele vivem. O negacionismo se aninha no berço da ignorância. É fechar os olhos às verdades, como eu disse, é selecionar no que quer acreditar porque só aquilo lhe ajuda a construir sua verdade. Porém ser confrontado diariamente é bom. Seus valores, moral, realidade, serão cada vez mais fortes à medida que você conhece mais e vê quanto do que acredita ser sua verdade sobrevive. E se não sobreviver, não há problema em mudar. Para um exemplo básico, o ser humano seleciona o milho há muito mais tempo do que obteve qualquer conhecimento sobre como funciona o melhoramento de espécies. Não conhecer genética não impede que pessoas façam filhos. A verdade existe e é inevitável, faça você o reconhecimento dos fatos ou não. Você negar um fato só pode lhe prejudicar, porque no mundo real, o fato continua existindo, e quem fica de fora dele, no final, é você. 

Eu não sei a corrente política do autor, embora uma parte de mim queira crer que ele está tirando sarro e não concordando que essas teorias de conspiração existem. Da forma como eu vejo, a ironia é justamente que existe muita gente que acredita nisso e é perigoso demais a gente só fingir que o problema não está lá. Não é que as vacinas da COVID-19 colocam chips na gente, mas é sobre caçoar da própria 'moral' que temos de falar sobre os negacionistas, sendo que é muito mais alarmante que essas pessoas existam. A gente não pode levar como "é apenas uma fake news", porque para alguém ela é séria e se a gente não procura mostrar o que é falso nessas notícias, logo o passado vai se repetir. A ditadura militar, por exemplo, é feita de negacionismos. Vamos negar que estamos vendo pessoas desaparecerem por suas ideologias. Vamos negar que estamos vendo artistas serem exilados. Vamos negar que estamos sendo negados à nossa própria expressão por medo de nossos vizinhos nos delatarem. Quem aí nunca viu uma pessoa mais velha falar "fala baixo, os vizinhos estão ouvindo"? Quem aí quer ter medo?

A verdade (feita dos meus fatos...) é que todo mundo nega um monte de coisa para ser capaz de continuar vivendo. Mas é preciso ter cuidado. Vigiemos o passado. Individual e coletivo. Nosso país é feito de uma democracia frágil, instável, juvenil. Nosso povo é feito de imigrantes europeus, escravizados africanos, negligenciados povos originários. Gente muito pobre e gente muito rica. E a camada do meio que corre para um dos lados à medida que lhe satisfaz. Quando é para cobrar salário para si, todo mundo é pobre demais. Quando é para "viver de caridade" todo mundo é rico demais. A verdade é que todo mundo é fodido demais. Negar as nossas lutas de classe econômicas e sociais é negar a própria essência do nosso país. O Brasil não é para os fracos e, Deus, como eu sinto sua falta. A beleza do nosso país talvez seja sim fazer samba com desgraça, mas ei, pelo menos a gente tá falando dela também, né?

Eu espero que tenham gostado desse livro como eu gostei. Ótimas reflexões e, com certeza, uma ótima leitura.

"Seja muito bem-vindo ao Brasil

Espero que você tenha o perfil

Aqui estamos em guerra civil

Quem não tiver estômago, abandonar o navio"

"Bem-vindo ao Brasil" - Selvagens à Procura da Lei

Comentários

Postagens mais visitadas