(Parte 3/3) Coma e emagreça com ficção científica - I. J. Ozimov, G. R. R. Martin e M. H. Greenberg (org.)

 Olá fãs de leitura.

Bem-vindo(a) à terceira e última parte sobre esse livro de contos extremamente inusitado. Digo isso porque quando imaginamos ficção científica, sempre pensamos em tecnologia, robôs, maluquices biológicas, seres extraterrestres e não, certamente, um assunto tão corriqueiro e comum como o consumo de comida. 

Bom, para começar, eu gostaria de destacar algumas palavras de Asimov ao introduzir o livro: "Animais que se saturam facilmente e que satisfazem apenas suas necessidades imediatas, como no caso do ar e da água, estão propensos a morrer de fome entre refeições mais espaçadas." e "[...] uma casta dominante [...] cujo fornecimento de comida era garantido por um extenso período de tempo e que podia engordar e permanecer gorda (grifo do autor)." e "[...] já que o crescente instinto de comer tudo que há à vista [...] é tão grande [...] não há espécies de organismos, a não ser o ser humano, que batalham para negar a si mesmas a comida disponível a fim de permanecer magra." 

Vou começar a me debruçar sobre cada uma dessas sentenças:

"Animais que se saturam facilmente e que satisfazem apenas suas necessidades imediatas, como no caso do ar e da água, estão propensos a morrer de fome entre refeições mais espaçadas."

Isso é uma asserção biológica. Os organismos vivos mais complexos, como plantas, fungos e animais, tiveram tanto sucesso porque evoluíram formas de manter seu metabolismo funcionando mesmo em tempos adversos. Isso lhes garantiu sucesso em diversos ambientes mesmo com falta de energia primária por algum tempo, porém, é claro, a forma como cada um desses reinos da vida evoluiu para resolver esse problema dependeu das dificuldades que eles enfrentam para obter e manter sua energia. É importante falar que, caso você nunca tenha parado para pensar nisso, TODAS as moléculas fornecem energia, a diferença é só como essa energia pode ser obtida pelo organismo. Por exemplo, não é nada fácil para os animais, plantas e fungos obter energia de minerais, mas microrganismos redutores de sulfato conseguem fazer isso e sobreviver muito bem num extrato rochoso lá no cafundó do Judas. O que limita umas e permite outras formas de vida a viver dos componentes de um ambiente é seu metabolismo. Nós não conseguimos viver de luz como as plantas, nem tampouco de monóxido de carbono com os metanógenos, pelo simples fato de que não temos as moléculas e vias metabólicas necessárias para pegar essas moléculas, quebrar suas ligações e formar novas moléculas a partir disso. 

Existem três moléculas que são os principais estoques de energia dos organismos complexos, sendo elas amido, glicogênio e triglicerídeos (gorduras). Vamos entender um pouco mais porque a gordura é uma vantagem e tanto para o nosso estilo de vida animal:

O amido, selecionado como estoque de energia nas plantas, exige muito espaço e é extremamente hidrofílico (amigo da água), o que aumenta seu peso. De fato, se animais estocassem amido ao invés de gordura, teríamos um problema muito grande para andar por aí porque o amido ocupa muito mais espaço para armazenar a mesma quantidade de energia que a gordura. Plantas são seres sésseis, então não tem problema nenhum para elas estocar uma fonte pesada. 

O glicogênio, selecionado como estoque de energia nos fungos, exige um pouco menos de espaço que o amido, mas também tratasse de um aglomerado de moléculas de glicose, então é extremamente hidrofílico. Na realidade, a única diferença entre amido e glicogênio é o tipo de ligação química entre as glicoses, sendo que o amido se agrega formando uma molécula linear e o glicogênio se agrega formando uma molécula ramificada. A forma linear do amido permite que mais moléculas de água interajam com as moléculas de açúcar, por isso é mais hidrofílica que glicogênio. Na essência, ambas essas formas são as mais eficientes em prover energia para o organismo, porque a glicose tá ali já na sua forma necessária para ser absorvida pelas células. Como fungos também são seres sésseis na maior parte de seu ciclo de vida, estocar energia numa forma relativamente pesada não fornece muito problema.

Agora, os destemidos triglicerídeos, que é o estoque preferida dos animais. É importante lembrar que os animais também estocam glicogênio, tá? Só que em tecidos muito específicos, sendo eles o fígado e os músculos. Na realidade, você sabia que a única forma que o cérebro funciona é se receber açúcar diretamente? Isso, em termos mais bioquímicos é: as células nervosas NÃO SÃO capazes de metabolizar triglicerídeos e precisam que monossacarídeos cheguem nelas para suas atividades. A gordura é uma molécula levemente anfipática, mas é classificada de fato como hidrofóbica (aversão à água). Você deve lembrar esses termos das aulas de química. Como os detergentes, moléculas anfipáticas possuem regiões que interagem bem com a água e outras, não. Porém para os triglicerídeos, a porção que interage bem com a água (o glicerol) tem pouca afinidade com a água por ser um álcool, então nossas gorduras não curtem nem um pouco um banho. Porém, esse (desproporcional) "equilíbrio" é essencial para manter o armazenamento do estoque (não interagir com a água é bom porque permite que o peso da molécula seja menor). Só para mostrar que o estilo de vida importa na seleção da forma de estoque ostras e mariscos só estocam energia em forma de glicogênio porque não se movem a vida inteira, então para que otimizar massa?

Você não precisa se contentar com eu falar que um estoque energético pesa mais que outro e que, devido ao estilo de vida dos organismos, é que ele foi selecionado diferente em cada reino. Vamos à matemática que nunca mente:

Numa estimativa conservadora, 1g de glicogênio possui 3g de água associados; 

Um indivíduo adulto saudável "normal" (isso é que não possui um alto grau de definição muscular, não está "seco") possui cerca de 20% de gordura corporal (4% pra cima e pra baixo podem variar para homens e mulheres); 

Se um indivíduo adulto pesar 70kg, ele possui 14kg de tecido gorduroso que estoca sua energia. Se ele só estocasse energia em forma de glicogênio, para cada grama de gordura ele teria que ter 4 gramas de reserva em glicogênio, ou seja, para ter 14kg de estoque de energia, ele teria que ter 56kg de glicogênio. Se 56kg representam 20% do peso da pessoa, então ela pesaria 280kg. 

Além de espaço, gordura tem outra vantagem enorme: ela tem menor peso isocalórico que as outras formas de estoque de energia. Isso significa que ela consegue guardar mais energia com menos moléculas. Aproximadamente, para cada 10g de gordura, tem-se 90kcal, enquanto para 10g de glicogênio, tem-se 10kcal. Até o amido é melhor nisso, sendo que para 10g de amido tem-se 40kcal. 

Agora vamos para um exemplo real:

Limosa lapponica, um pássaro que pesa cerca de 290 gramas, migra para sua reprodução. Ela vive em regiões do trópico de  Câncer e vai para o Ártico (polo Norte) para o acasalamento. Se ela não voar até lá, ela não se reproduz, o que em termos biológicas significa o fim da espécie. Voar não é tão custoso em termos de movimentação porque o meio de locomoção é o ar (pouca resistência ao movimento), mas mesmo assim, o fuselo tem um longo caminho a percorrer só para dar umazinha. Além disso, embora não seja difícil se locomover no ar, voar exige que o organismo mantenha o peso do seu corpo com pouquíssimo auxílio do meio. Para serem capazes de voar tanto sem parar, estima-se que 40~50% do peso corporal de uma ave migratória corresponde à gordura. O fuselo, consegue manter um voo de 1.000km sem parar durante 8 dias. Agora vem a matemática para nos auxiliar:

a) O fuselo tem pelo menos 116 gramas de gordura corporal (290 X 0,4);

b) Isso significa que ele tem pelo menos 1.090,4kcal estocadas (1g de gordura estoca 9,4kcal);

c) Isso significa que para ter essa energia em forma de açúcares, o estoque de carboidratos teria que ser de 1.090,4g (1g de glicogênio estoca 1kcal);

d) Como a gente tem o peso da água associado ao estoque de glicogênio, o corpinho do fuselo teria que pesar 3.217,2g para aguentar a migração. Isso é mais que onze vezes o que ele pesa.

Espero que tenha te convencido a vantagem para os animais que é ter tecido adiposo! Todas essas informações eu já tinha coletado, eu confesso, para um seminário. Então eu não pesquisei referências externas além do livro-base da disciplina, que foi "Fisiologia Animal - Adaptação e Meio Ambiente" de Schmidt-Nielsen (ed. 5, 2002). 

É importante falar que, diferente de outros animais, nós, mamíferos, somos endotérmicos. Isso é, temos o sangue quentinho porque o mantemos assim. Os cálculos de IBM (Índice de Massa Corpórea) que eu tratei nos outros textos se baseia na nossa taxa metabólica basal e parte dessa taxa está associada a mantermos nosso corpo na temperatura que ele precisa para manter seu metabolismo. É toda uma aula de bioquímica entender porque a temperatura é importante para o nosso metabolismo, mas espero que seja suficiente eu falar aqui que se não mantivéssemos nossa temperatura corporal, as reações não aconteceriam como deveriam e isso levaria à morte. É uma vantagem bem grande ser endotérmico porque permite que exploremos e sobrevivamos a ambientes diversos sem depender tanto da temperatura do ambiente. Porém, um custo que a endotermia tem é a energia, é claro, como tudo nesse nosso mundo natural.

Então produzir calor é caro? A propriedade física que diz quanto uma molécula consegue fornecer de calor ao ser quebrada é o coeficiente calorimétrico. A unidade de medida oficial é o Joules, mas no nosso dia-a-dia, é a famosa caloria, ou, quando falamos de alimentos, as quilocalorias, porque nosso metabolismo não é barato. Uma caloria significa que 1g de água recebeu energia o suficiente para ascender um grau Celsius na escala de temperatura. Ou seja, quando falamos que uma banana tem 50kcal, significa que as moléculas que compõem a banana, se fossem todas degradadas e doassem energia para a água, iriam conseguir transformar o gelo (0ºC) em uma sopa de elétrons, prótons e nêutrons chamada de plasma, ou o quarto estado da matéria. É claro que não tem um monte de corrente elétrica e partículas fundamentais circulando livres pelo nosso corpo quando comemos uma banana. Imagina que estrago seria uma fissão nuclear num organismo vivo! Isso porque nosso metabolismo não degrada todas as moléculas dos alimentos que consumimos (e nem conseguiria). Ele só quebra até os blocos que nos são úteis, ou seja, os carboidratos viram monossacarídeos (como sacarose e glicose), as proteínas viram os aminoácidos (como leucina e valina) e as gorduras viram os triglicerídeos. Ou seja, o que é de fato produzir calor no nosso corpo?

Bom, a temperatura do nosso corpo não se mantém de forma direta. Isso é, a gente não esquenta a água do nosso corpo para mantê-la a 37ºC. O calor biológico é um efeito colateral do nosso metabolismo. Todas as reações das nossas células dissipam calor para o meio. Porém, é claro, alguns tecidos fazem isso de forma mais eficiente porque eles trabalham mais, como o coração, músculos, cérebro e fígado. As reações metabólicas que acontecem perdem um pouco da sua energia em forma de calor e isso é passado para o sangue, que então se mantém na temperatura ideal já que é 85% composto de água. Nosso corpo é como qualquer motor, ele não é 100% eficaz e sempre perde parte da energia de suas reações em forma de calor. Isso é ideal, porque se fosse contrário, a gente não teria o sangue quente, entendeu?

Então, pera, se não é caro para nós produzir calor para manter a endotermia, como que ela custa energia? Bom, o que temos que pagar para sermos endotérmicos é manter a nossa capinha de gordura. Embora a gente não gaste para produzir calor, a gente gasta para manter calor. Se a gente não tivesse o tecido adiposo, sentiríamos muito mais o efeito da temperatura externa e aí sim teríamos um gasto grande com produção de calor. Já ouviu que passar frio emagrece? Isso é verdade. Se nosso corpo sente frio, algumas vias são ativadas para quebrar moléculas a fim de fornecer energia e esquentar nosso corpo. Se a gente sentir muito frio é porque estamos mais quentes que lá fora, então nosso corpo está na real doando calor para o ambiente, aí ele precisa trabalhar para ter algum calor para si e não sobraria muito tempo para outras funções essenciais como, por exemplo, pensar. Dá para ver que não trabalhar muito para nos esquentar é uma vantagem e tanto, né? Então, sim, endotermina custa energia, mas não porque a gente come para se esquentar, mas porque para se esquentar, a gente tem que comer. 

Pois bem, se ter metabolismo é o que diferencia a vida da morte, é claro que a evolução selecionaria aqueles organismos que mantivessem seu metabolismo funcionando da melhor forma possível. Se para isso é preciso selecionar em algumas espécies o comportamento de comer além do limite, que o seja! A gente tem que lembrar que nossa espécie surgiu a cerca de 300mil anos na África Oriental e que temos hábito migratório enorme! Além disso, temos que lembrar que somos animais! O comportamento de comer para sobreviver é muito anterior à nossa espécie e a gente carrega essa seleção. Independente de sermos seres reconhecidos como dotados de cognição há pelo menos 70mil anos, com agricultura há pelo menos 7mil anos e IFood há 12 anos, nós temos pelos menos 220 MILHÕES de anos de história mamífera atrás de nós. Marcas de comportamento glutão não vão embora só porque sabemos que temos comida o ano todo e que não é preciso acabar com o pacote de bis só porque você o abriu. A nossa luta psicológica contra episódios de comilança (não usarei o termo compulsão alimentar porque ele é um distúrbio sério que falarei mais pra frente) não é só contra a sociedade de consumo, padrões de beleza ou a balança, mas com nossos próprios genes selecionados por mecanismos muito mais fortes do que um pensamento racional é capaz de converter.

"[...] uma casta dominante [...] cujo fornecimento de comida era garantido por um extenso período de tempo e que podia engordar e permanecer gorda (grifo do autor)." 

A gente sabe que padrões de beleza mudam o tempo todo ao gosto do Mercado. Além disso, desde que a sociedade humana se estruturou, existem as pessoas que têm mais poderes que outras. A diferença é só a esfera em que as pessoas possuem poder. Uma mãe tem muito mais poder em casa que um filho, mas se o filho for dono de uma empresa, ele tem mais poder na firma que sua mãe. Muito é estudado sobre preferências estéticas da espécie humana e as relações de poder que estruturam nossas sociedades, mas mesmo as pesquisas que tentam abordar o problema com uma visão mais biológica têm dificuldades de traçar conclusões sobre o que foi selecionado para a espécie e o que é produto da sociedades modernas. As conclusões que parecem mais biológicas derivam-se de estudos de comportamentos comparativos, utilizando-se dos padrões encontrados em outros animais para inferir o nosso próprio. 

Muitas pessoas utilizam-se de argumentos falaciosos para defender visões nada biológicas para a nossa espécie e assim justificar preconceitos e formas de manipulação. Mas a verdade é que não é uma tarefa fácil separar a sociedade do ser humano e, por conta disso, é difícil saber o que é intrínseco aos indivíduos da espécie e o que é manipulado pelo nosso meio. Na verdade, esse problema acontece para outros animais também, mas a diferença é que é possível manipular experimentalmente os outros animais sem tantos problemas éticos como acontece para nós mesmos. Por exemplo, estudos muito famosos dos anos 1960 são uns dos que mais usamos para falar sobre a importância da sociabilidade para os primatas. Mesmo que você não conheça os experimentos, as conclusões que eles levaram moldaram extremamente teorias usadas hoje em dia na psicologia e ciências sociais, que com certeza afetaram a forma como a sociedade pensa sobre si mesma. Os experimentos foram principalmente conduzidos por Harry Harlow e a espécie que ele estudou foi Macaca mulatta, os famosos macacos Rhesus. Por meio das conclusões que ele teve sobre o crescimento e desenvolvimento de filhotes de macacos afastados dos pais assim que nasceram é que nós conseguimos traçar conclusões das consequências que nossa própria espécie teria se nascesse em completo isolamento. 

Ninguém nunca pegou um recém-nascido humano e fez o teste para ver se responderíamos da mesma forma. Os experimentos biológicos só podem alcançar a espécie humana até um ponto. É para todo o resto que entram as ciências humanas. Um problema que isso gera é que esses pesquisadores muitas vezes não tem a visão biológica da espécie, pelo menos não a visão que um naturalista teria. Além disso, outro problema é que as ciências humanas estudam humanos propriamente ditos. Com isso eu quero dizer, estuda o Homem a partir da perspectiva de um ser dotado de razão, consciência, opiniões. Todos esses atributos são fruto da vivência em sociedade e, por conta disso, é inevitável estudar o ser humano fora de seu contexto histórico. Ou seja, é claro que a sociedade sempre vai estar lá. Se a influência da sociedade sempre vai estar lá, como separar o que é individual do que é coletivo? Essa questão filosófica primordial é o que torna as conclusões sobre o que é um comportamento inerente do que é um comportamento construído em nossa espécie tão difícil. 

Como por exemplo, muitas pessoas citam estudos em que as preferências por parceiros sexuais foi feita para humanos. Basicamente, eles concluíram que homens e mulheres possuiriam preferências que podem ter relação com potencial taxa hormonal do parceiro. Homens com maxilar proeminente e rostos mais "masculinos" costumam ter maiores níveis de testosterona. Mulheres com quadris largos e rostos redondos costumam ter maiores níveis de estrogênio. Mas será que essa preferência é real uma decisão inconsciente ou é só a influência do meio em que vivemos? Será que gostar de homens com "rostos masculinos" não é só o que as mulheres aprenderam? Ainda mais no Ocidente (onde essas pesquisas foram conduzidas), uma vez que há enorme descendência de povos europeus que são por si mesmo descendentes de cruzamento genético Homo sapiens X Homo neanderthalensis, enquanto, por exemplo, muitas mulheres daqui não verão a mesma beleza nos rostos mais "afeminados" de homens asiáticos que, não por isso, possuem qualquer diferença estatística em níveis de testosterona para os descendentes de europeu.

Sobre questões de poder, novamente, as pessoas que costumam entender um terço e simplificar de forma que distorçam a realidade dos fatos argumentam que é natural haver machos alfa nas sociedades de primatas e que, por isso, homens mais fortes e que tenham um maior harém são naturais na nossa espécie também, merecedores de local de destaque e líderes natos. Primeiro que nem todos os primatas se organizam em harém e nem todos os primatas possuem líderes. Segundo que líder nato é um conceito nada biológico, porque não existe determinismo genético. Ninguém nasceu para ser nem fazer nada. Isso só mostra que não é tão fácil saber o que é biológico na nossa espécie porque, na esfera social, algumas pessoas nasceram sim para ser e fazer algumas coisas. E ainda, de quebra, permitindo-me uma provocação: percebamos sempre que só concluímos que os comportamentos de outras espécies são puramente biológicos porque nos falta meios de inferir quão não-biológicas elas são, o que parece ser mais fácil perceber para nós. 

Bom, dito um pouco sobre a complexidade de inferir o que é inerente à espécie e o que é produto da nossas sociedades, uma coisa pelo menos é certa: a gente é muito influenciável pelo meio. Se a moda muda, não vão faltar pessoas para mudar junto de um dia para o outro. Morais trocam a cada par de décadas, opiniões políticas a cada par de anos, gostos culinários a cada par de meses. Uma certeza que podemos ter é que o que achamos gostar pode mudar tão fácil de forma a sermos outra pessoa sem nem mesmo percebemos a mudança acontecer. 

Uma coisa, entretanto, se mantém constante: qualquer que seja o comportamento que a minoria dominante adota, ele é o comportamento desejado. Estar em ordem com os padrões é fazer parte de um grupo seleto de pessoas. Se é muito comum, muito fácil ter algo, ele não é mais uma exclusividade e, portanto, perde o prestígio. Existe um milhão de exemplos e Asimov fala, é claro, da estrutura corporal. Ser gordo é legal, depois não é, talvez seja de novo, quando se tornar por algum motivo fácil demais ser magro, como um apocalipse zumbi, vai saber. Muitos contos brincam com isso mesmo, inclusive. 

O comportamento de bando é o mais citado para explicar a nossa urgência em fazer parte de um grupo e se moldar para permanecer neles. A nossa alta dependência de nossos pares faz com deixemos de lado a nossa noção de individualidade e existe muitas vantagens em seguir um grupo ao invés de viver sozinho, tanto biológicas quanto sociais. Não tem nada de errado em querer se encaixar. Contudo, existem indivíduos entre nós que necessitam mais dessa afirmação. Indivíduos que entram num enorme conflito interno se descobrem pensar diferente (pelo menos parcialmente) do grupo no qual se inserem e muitas vezes optam por calar seus próprios pensamentos a fim de se manter no grupo. Existem indivíduos que não ligam tanto para isso e ficam contentes com um grupo socialmente menor, mas que concorda com suas ideias ou pelo menos permite pensamentos diferentes sem maiores conflitos. 

Para as pessoas extremamente carentes pela afirmação dos pares, é difícil não se torturar para se encaixar. Elas são as mais influenciáveis. Elas são as que mais sofrem com as pressões sociais, com as decepções que causam diante de expectativas irreais, são as que mais se cobram para se inserirem no padrão. São essas as pessoas que vão estar na moda custe o que custar. 

Como qualquer comportamento, ele com certeza possui base em nossos genes e, como é perceptível, esse fenótipo (traço de querer pertencer ao grupo) é altamente variável. Existem pessoas que ficam bem em deixar um grupo de lado se eles o julgam por comer uma bomba de chocolate. Essas pessoas possuem um menor comportamento de bando que as que vão optar pela salada Ceasar no próximo brunch

O importante aqui é nos atentar para quem nós somos: os que necessitam de mais ou de menos aprovação? Porque se somos os extremamente carentes, isso é perigoso para nós. Pode nos colocar diante de ações que não concordamos completamente, levando a um desgaste de nossos valores e uma decepção futura com as nossas decisões. Reconhecer quem é você na fila do "quão inserido eu preciso estar na sociedade" é um mecanismo de defesa muito grande porque as pressões sociais nunca vão acabar. No mundo capitalista que vivemos, nem a propaganda sobre emagrecer, nem a propaganda de comidas lindas e calóricas vai acabar. Agora, o que você vai fazer diante delas é a única coisa controlável por você mesmo. 

"[...] já que o crescente instinto de comer tudo que há à vista [...] é tão grande [...] não há espécies de organismos, a não ser o ser humano, que batalham para negar a si mesmas a comida disponível a fim de permanecer magra."

Isso é a pura verdade e em muitos casos é bom que seja assim. Se o consumo do que tivesse disponível não fosse natural para os organismos, poderíamos dizer adeus para as usinas sucroalcooleiras, por exemplo. Nada mais de bioetanol, cerveja e vinho, porque os microrganismos não ficariam lá que nem doidos fazendo fermentação só porque tem combustível o suficiente para eles. Poderíamos abandonar também o consumo mundial de ovos, leite e carne, porque os animais não iam se sentir tentados a engordar com o suprimento enorme de fonte de alimentos para eles. Tchau tchau economia global da agropecuária. 

De forma geral, ser magro é saudável e é essencial. Exige muito esforço e disciplina do ser humano moderno, porque trata-se de se forçar a fazer exercícios num mundo em que a maioria dos trabalhos é feito por 8h na frente de um computador. Trata-se de escolher comer frutas e legumes num mundo que o hambúrguer chega pronto e quente à sua porta. É uma dificuldade real porque tudo ao nosso redor nos incentiva a sermos cada vez mais sedentários e a cada vez mais prezar pelos prazeres momentâneos da comida pronta e ultra processada e do sofá e Netflix.

Porém, a gente percebe que a maioria das pessoas não deveria sofrer um tortura tão grande para só comer o essencial para o corpo. De fato, existem classes de pessoas que possuem comida abundante há muito tempo, mas a obesidade só se tornou um problema para a espécie humana de uns tempos para cá. Isso indica que mesmo que lá atrás existissem muitos reis, faraós e conquistadores que tinham vasto acesso à comida, eles não tinham tantos problemas assim para manter uma quantidade normal de consumo ao longo da vida. É verdade que tinham banquetes que duravam dias e que há relatos de comportamentos bulímicos a fim de continuar a comilança e bebedeira, mas indivíduos obesos não pareciam ser tão comuns como é hoje em dia ao passear na avenida Paulista, em São Paulo. É muito fácil também jogarmos na conta do "fomos selecionados para comer e estocar" o nosso comportamento glutão de comer comidas altamente calóricas em uma única sentada. Venho aqui, então, tentar entender o que pode estar de fato acontecendo:

1) Sim, já falei e reafirmo, as propagandas não ajudam em nada a controlar nossos impulsos de comer;

2) Também repetitivo mas óbvio, é claro que a praticidade de hábitos não-saudáveis num mundo que exige muito da nossa produtividade comercial nos afasta do nosso bem-estar;

3) Os níveis de ansiedade na espécie humana estão cada vez maiores e começando cada vez mais cedo na vida. Ansiedade é muito ligado a consumos excessivos e crises de depressão que nos levam a cuidar cada vez menos de nós mesmos;

4) Distúrbios alimentares são normalizados e, até tal ponto, isso é bom, mas depois de um limite, naturalizar episódios de compulsão alimentar, bulimia e anorexia nervosa é problemático.

Eu gostaria de falar um pouco deste quarto ponto, porque os outros eu já me debrucei um tanto sobre. Distúrbios alimentares são coisas curiosas num termo biológico. Até tal ponto, é fácil argumentar psicologicamente porque as pessoas desenvolvem esses comportamentos. Ora, a pressão social leva jovens mulheres a se matarem de fome para manter a estética, ainda mais por volta dos 13-14 anos, em que seus corpos estão mudando e a insegurança é alta. Ora, é claro que a pressão social e o estresse podem ser aliviados com prazeres e comer é prazeroso, então que mal há em comer um pouco mais? E se esse pouco mais já te fez entrar na merda, que tal comer tudo que tem na mesa? Aos poucos isso leva à compulsão alimentar, em que a pessoa não consegue não comer até ver tudo ir embora. 

Comportamentos controversos em relação à alimentação são curiosos porque comer é uma coisa essencial na vida e não é possível simplesmente abrir mão dele para se livrar do problema. Por exemplo, quando falamos do uso de drogas, elas não são essenciais, então uma vez que se evite os gatilhos que despertam seus consumos, é relativamente simples se livrar do problema. Agora, e quando o gatilho nunca vai embora? Porque a comida nunca vai deixar de ser uma coisa presente na vida da pessoa.

Eu me lembro uma vez de ler sobre bases evolutivas para a bulimia e anorexia nervosa. Esse comportamento é mais curiosos ainda que a compulsão, porque comer de menos levaria diretamente à morte da pessoa, então como isso poderia apresentar qualquer valor adaptativo de forma a ser selecionado na espécie? Em outras palavras: como comer pouco ou nada por ter qualquer vantagem?

Bom, o artigo falou que, de fato, morrer não é vantajoso para a espécie, mas o ser humano pode viver a vida inteira em subnutrição e ainda conseguir ter filhos e cuidar da prole de forma bem-sucedida. Incluso, muitos estudos mostram que não existe tantos problemas assim, em quesitos de desenvolvimento, para o filho se a mãe é subnutrida ou não. Isso é fácil de ver as vantagens biológicas: mesmo que a geração dos pais passe por dificuldades, os filhos nascem saudáveis e conseguem continuar a espécie. Se somarmos que os homens optam por corpos magros para reprodução, então têm-se a explicação de porque a anorexia e bulimia nervosa são tão comum em mulheres e muitas mães com ANA e/ou MIA terão filhas com os mesmos distúrbios. 

Novamente, para explicar esses comportamentos, é inevitável apelar para os fatores ambientais que os moldam. Porém, uma vez que as pessoas com esses comportamentos se reproduzem de forma bem-sucedida, a seleção natural não vê porque eliminar quaisquer que sejam as bases genéticas para ele. 

Qualquer distúrbio alimentar surge de uma visão deturpada do próprio corpo da pessoa e, consequentemente, leva a uma relação problemática com a comida. Eu acredito que não é só a compulsão alimentar, a anorexia ou o tabagismo que possuem bases genéticas, mas sim o comportamento compulsivo. Eu acho que esse sim, a tendência de cometer excessos, é fator crucial para as escolhas dos indivíduos. A única diferença é qual excesso que cada pessoa vai cometer. Tem gente que parece não ter excesso nenhum, ou os que teriam estão num nível considerado "normal" pela sociedade. Existem outras que não importa qual seja o objeto de sua compulsão, o que importa é consumir. São o que chamamos popularmente de "8 ou 80". Esse fator psicológico é o que acho que tem que ser combatido, não diretamente a comida, a droga ou a poeira no chão.

Somos humanos e somos complexos, cheios de facetas e traumas que nos levam a cair em armadilhas que causam mal ao nosso organismo, mas em algum nível bem para nosso cérebro. Eu, com minha visão atual de bióloga, defendo que essas duas entidades NÃO SÃO a mesma coisa. Incluso, da forma como vejo, estou pronta a argumentar que nem nosso cérebro é uma união coesa, mas aqui não cabem minhas reflexões filosóficas e científicas sobre quem somos. 

Voltando só um pouco, eu quero esclarecer que não vejo nada de errado em não tratar distúrbios alimentares como tabus. Tudo é cabível de discussão e quanto mais informação, mais munição para tomadas de decisões conscientes. O que eu quis dizer com falar sobre isso pode ser problemático é que não existe uma curadoria desses conteúdos. Acho que o caso que estourou do Facebook e Instagram saberem sobre o consumo indevido de redes de apoio ao comportamento ANA e MIA e não fazer nada só para não perder dinheiro chocou todos que têm alguma noção do quão perigoso é para pessoas vulneráveis ficarem conversando com outras pessoas vulneráveis (quando não mal-intencionadas) sem a supervisão de profissionais voltados a seu tratamento. Não é nada difícil achar páginas que dão dicas sobre comer menos, sobre como esconder que está comendo demais ou quais técnicas se usa para vomitar de forma eficiente após comer uma pizza. Jovens que queiram mais informações estão a poucos cliques de comunidades voltadas a incentivar esses comportamentos, ou pelo menos normalizá-los. Mas não normalizá-los no sentido bom do "está tudo bem pensar assim, você não tem culpa, mas isso pode ser tratado". Eles estão mais normalizando do tipo "eu faço também, não é legal? Como você ainda não tentou essa técnica aqui ou esse truque acolá?". Crianças e adolescentes que já estão propensas a se causar mal não precisam de mais gente se machucando. 

Bom, eu vou terminar por aqui porque esse texto está enorme! Esse livro foi muito bom e de um assunto que me é muito interessante, porque nutrição, evolução e comportamento são coisas muito queridas por mim. Eu recomendo altamente essa leitura para qualquer pessoa que precisa ver como os causadores dos nossos problemas somos nós mesmos, pessoas que escolhem escorregar e errar. E nem sempre isso é ruim ou bom, errado ou certo. É só o que fazemos. O que temos que fazer é mudar as decisões que tomamos para lidar com nossos problemas, procurando sempre cuidar de nós mesmos porque a saúde não deve ser uma meta, mas sim uma jornada para a vida inteira. A única certeza que temos é que vamos morrer, não é mesmo? Pois bem, a forma como cada um vai chegar nessa certeza é um problema individual e a única coisa que devemos nos atentar é estarmos satisfeitos com o que escolhemos para serem nossos pontos fracos, desde uma pessoa até um snickers. 

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