Morte na Praia - Dama A. M. C. Christie (Agatha Christie)
Olá fãs de leitura, como vão? Hoje trago um livro de uma das escritoras mais emblemáticas do mundo, além de ser uma das minhas queridinhas: Agatha Christie, a rainha do crime. Eu li esse livro recentemente (tipo, terminei ontem mesmo) e, como todos os livros que leio da autora, eu o devorei. A escrita envolvente e simples de Agatha Christie conquista qualquer coração, até mesmo das pessoas que não costumam sentar com uma xícara de café num domingo de manhã e se deleitar com páginas (ou tela) de uma boa história. Bom, como sempre aviso, eu o li em versão traduzida para o português e, sim, apresentarei spoilers.
Bom, começando sobre a autora:
Agatha Mary Clarisse Miller é inglesa e nasceu no final do século retrasado. Sim, ela é dos anos 1800. Ela é a autora mais traduzida do mundo. (Sim!) Esse título é de uma mulher! Estima-se que suas obras tenham sido traduzidos para cerca de 100 línguas em mais de sete mil versões (leia mais em: <https://www.spleituras.org.br/noticia/alguns-recordes-literrios->). Ela era a filha mais nova de três irmãos e serviu na Primeira Grande Guerra como enfermeira (leia mais em: <https://www.britannica.com/biography/Agatha-Christie>). Ela foi casada duas vezes. A primeira vez foi com um homem que lhe concendeu seu tão conhecido sobrenome (Christie), enquanto a segunda foi com um arqueólogo que a levou para várias expedições no Iraque e na Síria. Sobre o primeiro casamento: terminou em tragédia, com o marido traindo-a, o que a levou a um episódio de surto em que ela sumiu por alguns dias e foi encontrada em um hotel registrada no nome da amante do, então, esposo (leia mais em: <https://www.biography.com/writer/agatha-christie). Agatha Christie escreveu, principalmente, para o gênero narrativo ficcional policial, entretanto também escreveu dramaturgias e outros livros de narração ficcional feminina (leia mais sobre gêneros literários em: <https://escritaselvagem.com.br/carreira-literaria/lista-de-generos-literarios/>). Embora pouco falado, Agatha teve uma filha em seu primeiro casamento, que, como o patriarcado prevê, levou à não perpetuação do tão famoso sobrenome. Rosalind Margaret Clarissa Hicks teve um filho em seu primeiro casamento: Mathew Prichard, que é o único neto consanguíneo da Dama do mistério. Mathew acrescentou algumas crianças a essa linhagem, três precisamente, porém, até onde consegui traçar, nenhum deles teve filhos (trace você mesmo a linhagem em: <https://www.famechain.com/family-tree/42338/dame-agatha-christie-lady-mallowan>). O único bisneto de Agatha, James, é quem mais se esforça para manter a memória da bisavó viva a partir de sua empresa Agatha Christie Limited (leia muito mais sobre ela em: <https://www.agathachristie.com/>). Como se isso tudo não valesse, de quebra, ela é a única escritora que escreveu uma personagem tão popular que sua morte foi noticiada pela mídia!
Bom, agora vamos para a obra:
Bom, não é o melhor livro que li dela, no sentindo de que outros me deixaram com maior agonia até descobrir quem tinha cometido o crime, mas também tenho que confessar que a forma como o crime foi feita foi bem engenhosa e eu não suspeitei nem um segundo daquele desfecho. O último livro dela que tinha lido antes desse, "É Fácil Matar", teve um final bem mais previsível.
Esse mistério é do Hercule Poirot, que todos nós conhecemos e amamos. Fato pessoal: Quando eu peguei para ler algo dela, eu li três mistérios do Poirot e não queria saber dos outras personagens dela. Isso se quebrou com o tempo, assim como a maioria das teimosas infantis (ainda bem!). Enfim, nesse livro de 1940, mesmo ano em que o salário mínimo surge no Brasil (e não, isso não é importante, mas legar saber, né?), a autora propõem para a gente uma forma totalmente nova de se pensar em um crime: cometê-lo após o que se assume, criando álibis perfeitamente fortes que mantêm os criminosos em segurança. Eu nunca havia cogitado que isso seria uma possibilidade e por isso estava mais tonta que barata em tiroteio quando vi que as páginas finais estavam chegando e eu não tinha ideia do que estava acontecendo.
Eu gosto de livros de crime policial porque eles permitem que você pratique suas habilidades observacionais. Mais do que isso, gosto bastante da personagem Poirot porque, diferente de muitos detetives, ele não abusa tanto de pseudociências como "linguagem do corpo" ou "microexpressões" para resolver seus crimes. Ele é astuto em observar os detalhes e como ele fala nesse mesmo livro, sempre imagina um crime como um quebra-cabeça em que todas as partes precisam fazer sentido, sem se deixar algo de lado só porque é mais conveniente. É preciso, também, pensar sempre que a peça pode pertencer ao rabo do gato, não à parede! A lição que eu tiro disso é que nunca se pode aceitar observações e conclusões que excluam/omitam alguns fatos apenas para parecerem corretas. Se a "verdade" não abrange todos os fatos observados, então não pode ser verdade. Lógica que se fecha em si não é lógica!
Voltando à história, eu sabia que a jovem Linda Marshall não tinha matado ninguém e concluí bem rápido que ela estava se sentindo culpada porque tinha lançado algum feitiço sobre sua madrasta. O ponto principal que me fez perceber isso foi a conversa que ela teve com Rosamund Darley, em que ficou claro que a garota estava aflita. Ali eu juntei A com B e percebi que ela devia ter feito algo que a fazia se sentir culpada de alguma forma. Como sabia que não fora ela quem tinha matado, a única outra explicação lógica era que ela tinha feito algum tipo de pedido para a morte de Arlena e depois se sentiu culpada por achar que sua magia teria feito aquilo. Sobre o coronel Marshall, eu também sabia que ele não era culpado, mas ficou nítido que ele e Rosamund estavam tratando de proteger um ao outro. Percebi isso logo no começo dos depoimentos, em que Rosamund faz questão de contar esse "detalhe". Eu pensei seriamente que Rosamund era a responsável pela morte de alguma forma, até pelo jeito como ela conduziu uma das conversas com Marshall, que foi enfático dizendo que não se separaria de Arlena a fim de cumprir seu dever de marido. Ali ela teria um motivo forte para matar sua "concorrente": por achar que Arlena não era boa o suficiente para o coronel e por constatar que ela nunca teria Marshall enquanto a esposa estivesse na jogada.
Incluir o detalhe do tráfico de drogas foi puro artíficio e isso também era bem óbvio. Incluso, só mesmo os bobalhões da polícia local para acreditar que essa era uma resolução plausível para o problema. É claro que existia o fato do perfume em Pixy's Cave, indicando que Arlena poderia ter ficado ali dentro, mas isso não se encaixa com a perda de dinheiro que ela sofreu. E se pensássemos na hipótese da chantagem para explicar o envolvimento dela com o tráfico de drogas, então porque a matariam? Ela era uma peça que não levantava suspeitas, aparentemente respeitável que ainda poderia ser usada. Sobre isso, inclusive, levou-me à reflexão: Patrick a matou, beleza. Patrick a chantageava, beleza. Patrick roubou muito dinheiro dela, beleza. Patrick, então, decide assassiná-la simplesmente porque a beleza dela sem conteúdo cansou-lhe e, de quebra, o dinheiro estava acabando.
Gostaria de analisar isso.
Primeiramente, tentando evitar anacronismos, é importante lembrar que Agatha Christie é uma mulher de não uma, não duas, mas praticamente sete gerações atrás (ela teria 132 anos hoje, se considerarmos que uma geração surge a cada 15/20 anos [vide as datas discutidas em: <https://rockcontent.com/br/blog/dossie-das-geracoes/#:~:text=Gera%C3%A7%C3%A3o%20X%3A%20nascidos%20entre%201960,atualmente%20com%20at%C3%A9%2010%20anos)>], temos que: 132/17,5 = 7,543).
Nós sabemos que o machismo era muito mais forte anos atrás do que é hoje em dia e olha que o de hoje ainda falta muito para ser descontruído. Portanto, é claro à visão da época, mulheres e homens de uma certa classe social ou trabalho ou mesmo aparência deveriam ser de um determinado jeito. Isso gerava nas pessoas daquela sociedade diversos preconceitos que são explorados pelas obras da época.
Arlena Marshall era uma atriz. Não qualquer atriz, mas uma atriz de teatro de revista. Teatro de revista é um gênero teatral em que se utiliza falas e canções em duplo sentido para criticar os costumes de uma época. Porém, para manter sempre a alegria da platéia, esse teatro faz uso do corpo de forma provocante (leia mais em: <https://www.unicamp.br/iel/memoria/Ensaios/Bilontra/trevista.htm>). É claro que, então, a imagem pintada para o povo de Arlena era uma mulher belíssima, porém cheias de "minhocas na cabeça".
É legal ver como Agatha fala sobre isso. Ela explora a personagem de Arlena a partir da perspectiva mais estereotipada de que ela seria uma femme fatale, porém no final surpreende a todos pintando-a como uma jeune fille. Basicamente, todos acham que ela encantava os homens para se divertir e depois descartar, mas, na verdade, Arlena era ingênua e ursupável. O que é legal é que a escritora soube brincar com a visão errada que a sociedade pode ter das pessoas baseando-se apenas em sua aparência e um ou outro comportamento. Porém, por outro lado, ela pinta Arlena como uma mulher totalmente dependente da aprovação masculina e aí mora um pequeno problema (claro, na minha visão).
O problema não é nem falar de uma mulher assim, é claro que elas existem e podem ser belíssimas, como Arlena era, porém mesmo assim terá uma autoestima tão baixa que não se permitirá ver como está sendo usada. É claro que ela pode ter todo o homem que quiser e mesmo assim continuar se vendo como de valor baixo a ponto de ter que fazer de tudo para manter um homem em sua vida. O problema mora, na minha visão, em não falar nada sobre essa busca por validação masculina. Sem acrescentar detalhes à história, fica parecendo ao leitor que Arlena é assim porque, no fundo, é burra, ingênua e infantil, não uma mulher dona de si como sua aparência mostra, mas sim insegura e completamente devota à homens que a usam. O problema mora, também, em pintar como sendo culpa da mulher que os homens a descartam. Como se ela tivesse que ser mais ou menos inteligente, mais ou menos bonita, mais ou menos "dada", para assim manter um homem interessado em si.
Breve disclaimer: Eu não estou aqui julgando a escritora. Nunca poderia, eu simplesmente a adoro e entendo o contexto em que o livro foi escrito. Estou apenas colocando meu parecer sobre assuntos atuais utilizando como argumento os fatos de uma obra ficcional produto de sua época.
É contraditório, quando nos esforçamos a pensar um pouco, até mesmo essa visão proposta pelas próprias falas das personanges. A de que Arlena não era interessante o suficiente ou não se amava o suficiente. Se bastasse isso para "ter um homem para si", Marshall teria se casado com Rosamund não com Arlena. Não quero falar do final do livro, em que um casamento é arranjado em cinco linhas de conversa... isso deve ter acontecido em alguma época da humanidade, não tenho dúvidas. Mas levando em consideração que Marshall sabia do interesse de Rosamund, de sua astúcia e tudo mais, por que cogitar casar-se com uma que era bela e que (como o preconceito dita) no mínimo iria atrais mais olhares de homens do que um marido como Marshall gostaria. E sim, digo marido como Marshall porque ele simplesmente declara que Rosamund não irá trabalhar mais e ele sabe que ela irá obedecer porque o ama demais.
É engraçado ver como o mundo mudou em nem 100 anos. Hoje em dia, difícil será a mulher que aceitará que, para ter seu amor validado, terá que deixar sua vida profissional de lado. Porém, por outro lado, ainda é pungente a personalidade estereotipada em Arlena, a de que muitas mulheres belíssimas ainda falham em se valorizar e, sim, caem em "golpes do amor". Sobre esse tipo de golpe, é importante também abrir o olho para preconceitos sociais:
1) Muitas pessoas saem afirmando que mulheres são mais suscetíveis a cair em "golpes do amor" como foram os casos documentados em "Golpista do Tinder". Mais elas são mais suscetíveis ou são o maior público-alvo? (leia mais em: <https://www.bbc.com/news/business-47176539>).
2) É fato que o total de dinheiro roubado por "golpistas do amor" parece estar crescendo (leia mais em: <https://www.ftc.gov/news-events/data-visualizations/data-spotlight/2022/02/reports-romance-scams-hit-record-highs-2021>). Mas está crescendo mesmo, ou só mais pessoas estão reportando?
3) Ainda sobre reportar os golpes, é conhecimento popular que pessoas com maior poder aquisitivo são mais vítimas de golpe, mas elas são mais propensas a cair em golpes ou só reportam mais que outras (leia mais no artigo intitulado The Scams Among Us: Who Falls Prey and Why? em: <https://journals.sagepub.com/doi/pdf/10.1177/0963721421995489>)? Lembremos que poder aquisitivo (de forma geral) caminha com maior educação, ou seja, com mais conhecimento sobre seus direitos de forma geral.
4) Ainda sobre o artigo citado acima, há um trecho que destaca que para golpes em geral, vítimas homens relatam mais que vítimas mulheres. Vamos olhar para isso com cuidado: quer dizer que os casos de "golpe do amor" serem relatados por maioria de vítimas mulheres é um outlier, ou seja, um dado que não corresponde ao padrão e, portanto, a regra usada para explicar qualquer propensão de "homens caem mais em golpes por isso e isso e isso" não se aplica para explicar porque mulheres caíriam mais nesse tipo. Além disso, se o padrão é todo para "vítimas mais propícias serem homens" e só esse dado está fora, o mais provável é que esse dado está sendo superestimado ou os outros estão subestimados. Claro, isso se realmente existir uma diferença entre homens e mulheres caírem em golpes. Relacionando com a reportagem da BBC que fala sobre a provável subnotificação de casos de "golpes do amor" porque as vítimas se sentem embaraçadas: até que ponto os homens relatam mais outros golpes porque se sentem mais confortáveis e reportam menos sobre "golpes do amor" por, quem sabe, sentem que sua masculinidade foi ferida?
Feitas minhas considerações sobre isso, vamos voltar à Arlena Marshall. Ela caiu em mais de um golpe (sabemos de pelo menos dois, o cara da carta e Patrick), o que indica que ela não só era ingênua, mas também incapaz de se livrar de um padrão. Novamente, a problemática disso é tratar a questão da "mulher como objeto" de forma superficial. É claro que o livro não se propunha a isso e tá tudo bem. Eu é que estou me propondo. O que será que aconteceu com Arlena para ter criado em si esse comportamento tão destrutivo? Eu acho que essa história merecia ser contada, também. Nunca saberemos se, sequer, Agatha Christie chegou a imaginar algo mais profundo para Helen Stuart, que explicaria essa sua busca por validação, aparente desinteresse por qualquer assunto que não homens e, principalmente, por que ela foi se meter naquela caverna com um cara casado.
Sobre isso, inclusive, vale também a reflexão. Teoricamente, Patrick era casado com Christine. Sabemos que isso era só uma farsa para agirem juntos em suas tramoias, mas vamos lá explorar. Se o pensamento coletivo é de que mulheres "burras e bonitas" são as conquistadoras de homens, por que é que uma moça como Christine, de porte atlético e inteligente, não conseguiu segurar o seu? Entra mais um espelho do machismo aqui: a mulher "decente" é a para sempre amada, que o marido não é louco de se separar; porém, o marido também é feito de carne e não é louco de desperdiçar uma beldade como Arlena. Até quando homens terão seus atos justificados por estereótipos de mulheres que não capturam sequer um terço de suas reais personalidades? Fica aí a reflexão.
Novamente, volto a afirmar, eu não estou julgando a escritora. Sei de onde ela partiu e sei onde chegou e que a obra dela não se propõe a isso e tá tudo bem. Eu só quis oferecer nesse momento as minhas reflexões como leitora de 2022.
Obrigada pela leitura e espero que sua próxima aventura literária seja recompensadora!
Abraços.
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