Cândido, ou o Otimismo - F. M. Arouet (Voltaire)

 Olá fãs de leitura. O livro de hoje é bem antigo, com sua primeira edição em 1759 em francês. Ele é um livro em tom bem humorado e, de certa forma, filosófico. Embora não se trate de um livro de filosofia estritamente, isso é, explore uma teoria específica da filosofia, ele tem um fundo filosófico e seu final não poderia ser mais instigante. Eu o li numa versão traduzida para o português de 1964 e não foi a coisa mais fácil de se ler, tanto pelo português quanto pelo estilo desenfreado em que os acontecimentos se desenrolam, quase que atropelando a vida das personagens. Como sempre digo, pode ser que eu apresente alguns spoileres nessa minha reflexão, então caso não tenha lido e queira ler antes, tem uma tradução de domínio público em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_voltaire_candido.pdf>. Pois bem, vamos lá!

Devido à importância de Voltaire para o movimento Iluminista do século XVIII, existem muitas biografias do filósofo disponíveis na internet. Tentando me ater apenas a vida dele e não ao movimento filosófico do qual fez parte, filtrei as seguintes informações do portal de informações Beco das Palavras (<https://becodaspalavras.com/2021/09/29/voltaire-conheca-a-biografia-de-um-dos-maiores-filosofos-da-historia/>). François Marie Arouet nasceu na França no final do século XVII e não concluiu nenhum curso de nível superior. Filho da burguesia francesa dos séculos XVII-XVIII, seus pensamentos eram críticos em relação à monarquia absolutista e ao poder da Igreja. Embora opositor do absolutismo dos reinados europeus, não era contra a monarquia em si: pensava que o monarca deveria ser influenciado por filósofos a fim de prover o melhor para a sociedade. Ele escreveu diversos livros onde apresentava seus ideias, sendo que suas críticas levaram a muitos exílios e prisões. 

O livro "Cândido, ou o Otimismo" é um livro crítico em forma de sátira contra o pensamento de Gottfried Wilhelm Leibniz, um filosófo alemão que costumava afirmar que "vivemos no melhor dos mundos possíveis". Para Leibniz, a nossa condição de melhor dos mundos trata-se de uma melhoria qualitativa, em que cada elemento, não necessariamente perfeito, contribuiu para um todo perfeito. É uma visão que defende, basicamente, que Deus não pode errar e, portanto, tudo que cria deve ser a melhor versão do que pode ser e todos os fatos se desenrolam da melhor forma que podem se desenrolar (RATEAU, 2018 https://doi.org/10.35920/arf.2017.v21i1.45-65). É uma visão otimista da vida num sentido que procura olhar apenas o bom das coisas, sem sequer admitir que existem lados ruins ou que possam melhorar. 

Com isso dito, começa o livro de "Cândido, ou o Otimismo" apresentando a personagem homônimo do título. Ele é um discípulo do professor Pangloss, que ensina e segue fielmente a filosofia de Leibniz. Com Pangloss, Cândido aprendeu que o mundo é o melhor que pode ser e que, portanto, todas as situações carreguam mais esperanças que desaventuranças. A história começa em Westphalen (Vestfália), Alemanha (curiosamente existe um município em RS com o mesmo nome), no castelo de Thunder-ten-tronckh, que é onde mora Cândido, um criado do barão do castelo. Ele se apaixona por Cunegundes, filha do barão e os dois se beijam. O ato é descoberto pelo barão e Cândido é expulso do castelo. Começa então a "verdadeira" vida de Cândido que se vê expulso do lugar onde se vivia os melhores do mundo e começa a viver no mundo real. Voltaire não resguarda nenhuma mazela do mundo: traz à tona ciúmes, guerra, pobreza, velhice (vista como perda da beleza e vigor juvenil), agressões, humilhações, torturas. Todos as personagens sofrem de uma forma ou outra: Cunegundes sofre abuso sexual, físico e mental, sendo explorada após a queda de seu pai, barão, do castelo em Vestfália. Cândido vai para guerra, sofre ciúmes por Cunegundes, sofre assaltos por acreditar puramente na bondade das pessoas. Pangloss também passa por maus bocados. Enfim, Voltaire mostra que o mundo não é conto de fadas.

Embora existam muitas passagens interessantes no livro, já faz um tempo que o li e minha memória para histórias nunca foi excelente. Vou explorar aqui os episódios que mais me recordo e que, creio, servem para uma boa reflexão:

1) O episódio em que Cândido e Cacambo vão para Eldorado:

A cidade de Eldorado é um mito que pode ser entendido como uma exasperação fantástica criada pela sede de ouro europeia. Exploradores europeus recém chegados a territórios colombianos ouviram a história d'O Dourado e criaram um mito sobre uma cidade inteira que seria repleta de ouro baseados numa má-interpretação de um rito muisca para eleger o sucessor que os governaria (leia mais em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/01/130121_pesquisa_mito_eldorado_mv). 

De qualquer forma, na ficção de Voltaire, a cidade de ouro existe e Cândido chega com seu criado Cacambo nessa cidade após fugirem de Buenos Aires porque Cândido seria atacado pelo governador que desejava se casar com Cunegundes. Eldorado é retratada por Voltaire como o próprio paraíso na Terra. Há lá ouro que não acaba mais, todos vivem bem e felizes, carregados dos melhores bons modos que alguém pode ter. Todos tratam os forasteiros com enorme e espantosa solidariedade e, quando estes decidem partir, presenteiam-los com diversas ovelhas carregadas de metais preciosos: uma quantia para ninguém botar defeito. Ao ler o relato de tal cidade, eu me peguei perguntando porque será que Voltaire tinha pintado-a de tal forma. A explicação mais óbvia seria: ora, o lugar é carregado de ouro, eles não vinham problema nenhum em dá-los de graça para Cândido e Cacambo. Porém, se eles realmente deram o ouro como forma de presente, é porque entendem que o ouro é algo muito valioso e, se assim o for, porque dariam algo tão valioso para dois desconhecidos? Isso só ficou claro quando li um pouco sobre o pensamento de Voltaire e sobre como ele acreditava que os bons modos e o sorriso manso poderiam levar qualquer um a qualquer lugar e, principalmente, ao melhor dos lugares. Ele pintou, então, os moradores de Eldorado como generosos anfitriões porque, na visão do escritor, a cidade representava o ápice da civilização. 

É claro que Eldorado é mais uma das inúmeras críticas de Voltaire. É claro que o único lugar dos inúmeros que visitou entre Europa e América em que Cândido foi recebido seria um lugar que não existe. É claro que o único lugar em que o povo vive em harmonia, os bens materiais não geram conflitos e o anfitrião não quer tirar proveito do visitante é, também, o único lugar irreal da história de Voltaire. 

Embora o livro seja classificado como ficção porque suas personagens são irreias, o livro é permeado de fatos e localizações reais, o que cria uma verossimilhança na história, isso é, aquelas personagens poderiam existir e viver o que viveram. Nesse cenário real, de guerras e desentendimentos, Eldorado aparece como uma utopia: um lugar remoto ao qual se chega após ficar perdido geograficamente, um local em que todos sorriem para o vento. É o único lugar em que a filosofia de Pangloss poderia se afirmar e, vejam só, é um lugar que não existe. Com isso Voltaire escreve com todas as letras que a corrente otimista de Leibniz pode sim ser real, no mesmo dia que Eldorado ou qualquer outra utopia for. 

2) "(...) devemos cultivar nosso jardim."

Essa frase é conhecida até por quem nunca ouviu falar da obra. Essa frase encerra a história de Cândido e é dita pelo mesmo após Pangloss reafirmar seu otimismo com o argumento de que o local em que eles se encontram é o melhor de todos e que só estão ali porque uma cadeia de eventos se sucedeu e que se não tivesse se sucedido, bem não estariam. Ou seja, o melhor aconteceu em todas as situações e por isso viviam no melhor dos tempos.

A última frase do livro é, precisamente,: "— Tudo isso está muito bem dito – respondeu Cândido, – mas devemos cultivar nosso jardim." e representa um nível de maturidade filosófica por parte da personagem principal que, no começo da obra é pintado sobre a seguinte ótica: "[Cândido] Concluía que, depois da ventura de ter nascido barão de Thunderten-tronckh, o segundo grau de felicidade consistia em ser mademoiselle Cunegundes; o terceiro, em vê-la todos os dias; e o quarto, em ouvir mestre Pangloss, o maior filósofo da província, e por conseguinte de toda a terra.". Esse trecho mostra a inocência de Cândido, que julgava ser sua província o espelho do mundo e, por lógica, quem na sua provincía mandava, deveria ter o maior poder do mundo; quem na sua província sabia, deveria ter todo o conhecimento do mundo. Após suas aventuras, Cândido se resigna a responder seu grande mentor Pangloss com aprovação, mas cautela, afinal, de nada vale filosofar sobre a vida e não viver. 

Após ver todo o mal que existe no mundo, Cândido não é mais tão otimista, mas tampouco é pessimista. Não se trata de não ver o bom do mundo, mas sim perder a prepotência de que um bom cenário para si deve ser também um bom cenário para todos, assim como se desarmar das mãos do destino, que supostamente ditaria qual o melhor dos mundos para ser vivido sem que nada se pudesse fazer em relação a isso, como conclui Pangloss: "(...) as coisas não podem ser de outra maneira: pois, como tudo foi feito para um fim, tudo está necessariamente destinado ao melhor fim". 

Cândido se limita a dizer que sim, sua situação final é boa, mas só é boa porque há trabalho justo que a torna boa. Só é boa porque ele está agindo para que seja. Com isso, Voltaire desmonta os argumentos de Leibniz com a simples cartada de: se realmente se vive nos melhores dos mundos, mesmo sem nada fazer, a situação seria boa; porém, se não cultivar o jardim, Cândido não terá o doce de cidra para se lambuzar ou o pistache para apreciar. Portanto, é impossível que o melhor dos mundos existe se nada fizermos para que isso aconteça. E nessa curta resposta de Cândido está esprimido o pensamento revolucionário do autor. Afinal, a quem deseja revolução, deve-se desejar também a mudança constante para que o cenário se torne cada vez melhor. Se Cândido não tivesse amadurecido sua filosofia, Voltaire não conseguiria encerrar tão brilhantemente sua pequena sátira. 

Como eu disse, faz um par de semanas (ou mais) que eu li esse livro e por isso não me lembro exatamente de todos os detalhes, mas como nos meus outros textos, meu objetivo não é fazer uma resenha (muito menos crítica) dos livros que leio, mas sim refletir um pouco sobre eles; comentar um pouco sobre as partes para mim são mais memoráveis. Enfim, como sempre, isso é só a minha visão sobre o livro e sobre o que entendo da vida, fiquem à vontade para discordar (como se para isso se precisasse permição) e se quiserem me contar um pouquinho sobre a opinião de vocês, a sessão de comentário é aí embaixo.

Obrigada pela leitura e espero que sua próxima aventra literária seja recompensadora!

Abraços.

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