A Máquina do Tempo - H. G. Wells
Olá fãs de leitura! Hoje eu começo meu blog sobre minhas impressões sobre os livros que leio. O primeiro livro que irei escrever sobre se chama "A Máquina do Tempo", do escrito Herbert Geoge Wells. Minha análise irá explorar detalhes da obra que podem ser considerados spoilers, portanto, caso não tenha lido o livro ainda e não quiser saber a forma como a obra se desenrola, recomendo que primeiro tire suas conclusões da obra e depois leia as minhas. Sinta-se livre para complementar, discutir ou mesmo discordar totalmente de minha opinião; desde que seja feito com respeito, adorarei conhecer seus pensamentos sobre meu texto!
Antes de começar minha exposição (que focará principalmente na parte científica do livro), gostaria de oferecer minha observação sobre traduções. Eu li o livro em uma versão traduzida para o português e a obra original é da língua inglesa. É claro que existem problemas em traduções, porque (e aqui não quero criticar nem difamar o trabalho importantíssimo de um tradutor) a verdade é que qualquer tradução é enviesada pela interpretação de algumas palavras e contextos pelo próprio tradutor, que é um indivíduo processador das próprias opiniões e produto do próprio momento histórico. Como exemplo, menciono aqui a obra "We" de Evgeni Zamiatin, que li no inglês, o que por si só já é uma tradução do original russo. Não vou me alongar no livro, mas quero mencionar que os indivíduos daquela sociedade são chamados de "ciphers", que creio que traduziram como "números" para a versão em português (baseado no post de Isabelle Simões em: <https://deliriumnerd.com/2017/05/29/livro-nos/>), mas basta uma pesquisa no significado de "cipher" que sabemos que não significa números, mas sim uma relação com ou a figura 0, ou fazer contas matemáticas (inglês arcaico) ou mesmo o processo de codificar (principalmente, mas não exclusivimanete, na lógica matemática), ou seja, foi necessária uma escolha no momento de traduzir o termo e por mais que a escolha mais prudente tenha sido tomada e o tradutor tenha tido as melhores das intenções, ainda assim é uma escolha que um leitor da obra em uma única língua nunca será capaz de processar e essas são nuances importantes na interpretação de uma obra.
Eu imagino que uma das primeiras coisas que devemos analisar quando lemos uma obra e queremos entendê-la melhor é a vida do autor, ou pelo menos um contexto básico sobre o momento de escrita da obra. Afinal, um romance nada mais é do que uma obra fruto do imaginário de um indivíduo que, por sua vez, é um fruto de seu momento histórico. Existe individualidade, é claro, mas nenhuma pessoa escapa de sua fotografia histórica e ao compreender um pouco a época em que o livro foi escrito, mais fácil será compreender a obra em si e menores serão as chances de cometer anacronismo (embora deste processo creio que todos sejamos vítimas). Pois bem, comecemos com um pouco sobre o escritor e seu momento de vida enquanto escrevia o livro:
H. G. Wells é um britânico que passava por um momento de necessidade financeira e desespero juvenil quando escreveu "A Máquina do Tempo" (Posfácio da edição de 1931, H. G. Wells tinha 65 anos). Uma bibliografia muito mais completa do que os detalhes que explorarei aqui está disponível em: <https://www.britannica.com/biography/H-G-Wells>, que é o site de onde tirei as informações que explano aqui. Wells não vem de berço nobre e graduou-se em biologia pela Normal School of Science em Londres em 1888. Claramente ele possui um histório formal em ciências, além de ser interessado no assunto. "A Máquina do Tempo" é seu primeiro romance e foi publicado em 1895. Wells, portanto, tinha 29 anos. Ele mesmo afirma (em seu Posfácio já mencionado) que o momento de publicação da obra não foi o ideal. O embrião de sua ideia não foi bem explorado, tanto que qualquer um que lê o livro percebe que apenas o germe da história é ali descrito. O autor confirma que faltou maturidade na história, faltou uma melhor exploração da ideia, faltou-lhe tempo. De qualquer forma, o livro marca uma era de histórias de viagem no tempo e implementa a ideia de um maquinário capaz de viajar pela quarta dimensão (Prefácio da 2ª edição de 2018 por Braulio Tavares), ou seja, a ciência subjugando a natureza de uma dimensão antes (e até hoje) nunca navegada. Sua imaginação criou todo uma geração de histórias de ficção científica e por isso consagrou-se como um clássico do gênero.
Agora, vamos aprofundar um pouco no momento histórico da obra e já irei explanar um pouco minhas opiniões sobre porque destaquei esses momentos históricos e o que tem a ver com o livro:
- 1895 é dois séculos atrás, antes de ambas as Grandes Guerras, antes do direito ao voto feminino ser reconhecido na Inglaterra, antes mesmo da máquina de rádio ser finalizada, portanto é muito diferente da forma como vemos o mundo, desde a igualdade entre as pessoas até a forma como nos comunicamos, processamos informação e obtemos dados científicos.
- 1895 é após a Revolução Científica e a Revolução Industrial e o Humanismo, portanto já existia no imaginário coletivo o ideal do Homem subjugando a natureza, explorador dos fenômenos físicos e manipulador desses a seu bel-prazer, porém sem a consciência ambiental que está sendo construída nos últimos tempos, portanto a exploração não se importava muito com os males que causava, sequer conseguia calcular esses males, imaginando que a evolução científica é irrefreável e impedida apenas pelo intelecto racional e a imaginação dos seres humanos. Claro que esse pensamento ainda perdura entre nossa geração, mas tornou-se mais consciente de suas limitações do que parecia ser antigamente.
- 1895 é 10 anos antes da publicação de Einstein sobre a Teoria da Relatividade, que reúne diversos conceitos sobre o tempo-espaço (leia mais em: <https://www3.unicentro.br/petfisica/2021/03/11/um-pouco-sobre-a-teoria-da-relatividade/>), comentando sobre a relatividade com que o tempo "passa" de acordo com a velocidade percebida pelo espectador (quanto mais rápida, mais devagar o tempo passa e isso é toda a lógica para explicar viagens à velocidade da luz em que a pessoa não sofre os anos passados - como extensamente explorado por Scott Card). Mas, como dito por Peter Goddard, pesquisador de Princeton, "Não podemos, como seres humanos, ter a experiência da Relatividade Especial, por não podemos viajar à velocidade da luz" (leia mais em: <http://www.iea.usp.br/noticias/o-tempo-da-fisica-e-o-tempo-das-ciencias-sociais#:~:text=%22A%20dimens%C3%A3o%20do%20tempo%20possui,melhor%20n%C3%A3o%20usar%20a%20express%C3%A3o.%E2%80%9D>).
- 1895 é 13 anos antes da explanação de Hermann Minkowski sobre o tempo como dimensão. Embora seja o trabalho de Einstein que explica como o tempo deve ser levado em conta ao descrever um fenômeno, foi Hermann que uniu a movimentação pelo espaço com a movimentação pelo tempo (leia mais em: <https://sprace.org.br/index.php/e-por-isso-que-o-tempo-precisa-ser-uma-dimensao/). Essa unificação dos conceitos torna impossível a viagem descrita por Wells, que propõe que o Viajante no Tempo se movimenta pela dimensão do tempo sem se movimentar por qualquer outra. Na verdade, é impossível se mover no tempo sem se mover no espaço, assim como o contrário é real, portanto a viagem nunca seria como a descrita, borrões de luz ao redor dos olhos do maquinista, porque ela teria que se deslocar pelo território, por exemplo a máquina dar várias voltas ao redor da Terra na velocidade da luz, o que não é exatamente a experiência descrita pelo Viajante no Tempo. A dimensão temporal é diferente das outras três dimensões espaciais, porque nelas, você pode sim se movimentar por uma sem se movimentar pelas outras duas, como é explicado pelo próprio Viajanta no Tempo no começo do livro.
- 1895 é 36 anos após a publicação de "On the Origin of Species", o livro científico de Charles Darwin que deu origem à visão moderna da biologia. É claro que, visto os estudos formais de Wells, ele conhecia a teora evolutiva de Darwin e simpatizava com ela, afinal em seu livro, ele explora justamente como poderia se dar uma derradeira evolução humana extrapolando as diferenças entre as classes sociais da Era Pós-Revolução Industrial e antes do atuais trabalhos modernos em que trabalhadores de fábricas são uma espécie em extinção por si só. É interessante ver a forma como ele trabalha com esse lado evolutivo, com o Viajante no Tempo teorizando sobre como a evolução teria acontecido, com uma vitória da classe dominante e detentora dos meios de trabalho sob doenças e outras pragas, incluso a classe trabalhadora que se tornara um fardo necessário tão feio que foi renegada ao subsolo e teria lá se desenvolvido de forma diferencial. Basicamente, a espécie humana ter-se-ia tornado duas espécies (ou subespécies) de humanoides que se tornaram diferentes por manterem ou não a necessidade de sobrevivência como força motora.
- 1895 é duas décadas depois das primeiras discussões sobre o tema "Darwinismo Social", uma doutrina social baseada em pensamentos propostos principalmente por Herbert Spencer. O conceito mal-interpretado de "sobrevivência do mais apto" para explicar a hierarquia capitalista pós-Revolução Industrial foi o componente "científico" necessário pelos países europeus para justificar suas invasões em países africanos durante o Imperalismo na África, além de ser revisitado para justificar equivocadamente as ditaduras pós-1ª Grande Guerra de Mussolini, Hitler e tantos outros (que claro, também tinham outras questões envolvidas em suas artimanhas, incluso a visão maquinária da sociedade). É impossível ler "A Máquina do Tempo" e não se pegar pensando justamente sobre como a ideia de Darwinismo Social está presente na obra. Não digo que Wells a defendia, afinal essa é a única obra que li dele até o momento, mas muito provavelmente a via como verídica, porque a utiliza como base para sua evolução diferencial. Eloi e Morlock não eram só burguesia e classe trabalhadora, detentores do meio de produção e trabalhadores, mas também uma classe renegada que foi inferiorizada por uma classe "naturalmente" superiora, que seria mais inteligente e capaz, enquanto os ancestrais dos Morlocks seriam meros incapazes que tinham que trabalhar por não ter mais o que fazer. Basicamente, para a justificativa prática de uma divisão de pessoas entre pobres e ricas, era usada a justificativa do mais forte sob o mais fraco.
Após essa exposição de fatos e de impressões minhas, concluo meu texto ao analisar um pouco melhor o lado biológico da história, que é a minha atual formação.
O próprio autor (em seu Posfácio já mencionado) comenta que seus pensamentos na época do livro já não poderiam ser sustentados porque a visão geológica de um resfriamento inevitável em menos de um milhão de anos caiu por terra anos após a publicação.
A primeira coisa que observei ao ler o livro é que os Eloi e Morlocks parecem ser as únicas espécies mamíferas complexas que continuaram existindo. O Viajante no Tempo não explora muitos lugares, mas nos que explora, não encontra sequer roedores. Quanto a outros vertebrados, não são mencionadas a existência de anfíbios, répteis, peixes ou aves. Então, sim, parece que espécies descendentes de Homo sapiens são os únicos sobreviventes vertebrados daquela região do planeta, o que me parece improvável. Nós somos organismos extremamente complexos e nossa exigência de desenvolvimento (tanto embrionário quanto até atingir fase sexual madura) é muito custosa para justificar nossa sobrevivência no lugar de organismos vertebrados mais simples e menos exigentes.
Quanto à fisionomia e fisiologia de Eloi e Morlocks:
Uma possível explicação para a fisionomia infantil dos Eloi é o processo de pedomorfose, em que o organismo sexual maduro detém características do organismo juvenil. Existem alguns casos naturais em que isso ocorre e o principal motivo para acontecer é o desenvolvimento das gônodas mais rápido que o resto do corpo. Geralmente ocorre em ambientes de estresse em que é reconhecida uma urgência para crescimento populacional. Essa urgência pode ter sido causada pela predação inicial dos Morlocks, entretanto a percepção desse estresse teria que ocorrer por algum mecanismo fisiológico e eu não consigo hipotetizar nenhum mecanismo natural humano que reconheceria uma necessidade de crescimento populacional. Para elucidar melhor, existem organismos que se reproduzem quando a temperatura aumenta, ou seja, se ficar sempre frio, eles não se reproduzem e se, em um ano, ficar sempre quente, naquele ano haverá um enorme crescimento populacional. Entretanto, o ser humano pode (teoricamente) se reproduzir o ano todo e o ciclo fértil de ambos os sexos biológicos não depende de nada além de uma ciclagem hormonal interna. É claro que há interação com o ambiente, exemplo é fêmeas da espécie humana menstruarem mais cedo ou mais tarde em meses de maior estresse, mas isso não aumenta a taxa reprodutiva, apenas acelera o ciclo ou o retarda. Algumas espécies se reproduzem mais em resposta ao maior consumo calórico, porém isso não é verdade para humanos. Até certo limite para baixo e para cima, a fêmea da espécie não perde capacidade reprodutiva e certamente não a ganha ou produz mais filhos se estiver mais gorda.
Quanto ao Morlocks, são descritos como de aparência cavernícola. A evolução e diferenciação de organismos cavernícolas gera muitas discussões e não há consenso de como se dá. Em alguns casos, parece que não há evolução genética, mas sim uma resposta diferencial ao ambiente em que o organismo nasce e se desenvolve. Em outros casos, há de fato evolução documentada de descendentes cavernícolas a partir de ancestrais não-cavernícolas. Se o caso dos Morlock for o primeiro, isso exigiria que a espécie ancestral dos Morlock tivesse mecanismos flexíveis que respondessem ao ambiente cavernícola. Se essa espécie ancestral formos nós, o que é a única coisa possível de concluir sem nenhuma outra pista, esse processo é altamente improvável. Por exemplo, a cor de pele de um indivíduo que tome pouco sol pode sim se tornar empalidecida, mas não depende do sol para ter ou não melanina, ou seja, ficar sem tomar sol não originará um organismo albino. Essa resposta ao sol pode se dar quando o organismo possui uma molécula pigmentadora que depende da ativação química dos raios solares, ou quando o organismo adquire cor na pele por conta da alimentação que é mais restrita na caverna, mas certamente esses não são os mecanismos de cor de pele em nós, humanos. A pele é só um exemplo, mas pode-se aplicá-la aos olhos também e a outras características.
A dieta diferencial entre Eloi e Morlock sustentaria a explicação para mudança de hábitos, incluso ajudaria a explicar a conformação muscular diferencial e mesmo (até certo ponto) a inteligência que parece ter sido mantida em melhor estado nos Morlocks, mas não é suficiente para explicar a evolução biológica de um ancestral comum em dois descendentes diferentes. Isso porque, de tudo que consegui pensar, a existência de Eloi e Morlocks se baseia em uma premissa errada da evolução (e que incluso é citada mais de uma vez pelo Viajanta no Tempo): a de que a evolução pode acontecer em resposta à necessidade, o que deriva do Uso e Desuso de Jean-Baptiste de Lamarck. É claro que o que poderia ter acontecido é o surgimento de indivíduos com olhos mais sensíveis ao escuro, que prefeririam viver lá, que se reproduzissem entre si e um dia a especialização alcançasse o ápice no fenótipo de olhos "de gato" (como descrito no livro), mas a verdade é que 800.000 anos e um quebradinho é pouco tempo para tamanhas diferenciações surgirem e se manterem a ponto de produzir duas populações estáveis de humanoides. O livro explora que essas espécies surgiram porque a falta de necessidade de esforço pelos Eloi e a tamanha necessidade pelos Morlock forçou uma adaptação aos seus devidos ambientes, um onde é preciso manter a violência e outro em que é preciso manter a curiosidade ingênua e a capacidade de viver, basciamente, no bem-bom e tédio. Esse conceito não é aceito no pensamento biológico atual, a necessidade não molda a evolução e não explicaria a existência dessas duas espécies.
Por fim, eu quero dizer que o livro é muito bom e serei eternamente grata por ter me proporcionado esses pensamentos sobre a ciência por trás da história. Não quero que pareça uma crítica ao escritor, espero que esse meu texto seja tomado como uma breve atualização aos conceitos científicos a partir de uma entusiasta da ciência. Não estou livre de erros, caso os encontre, por favor, me avise para que assim possa melhorar cada vez mais.
Obrigada pela leitura e espero que sua próxima aventura literária seja recompensadora! Abraços.
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